sábado, 10 de agosto de 2013

CONTOS

E vem o Sol

Tinham acabado de se mudar para aquela cidade. Passaram o primeiro dia ajeitando tudo. Mas, no segundo dia, o homem foi trabalhar, a mulher quis conhecer a vizinha. O menino, para não ficar só num espaço que ainda não sentia seu, acompanhou. 

Entrou na casa atrás da mãe, sem esperança de ser feliz. Estava cheio de sombras, sem os companheiros. Mas logo o verde de seus olhos se refrescou com as coisas novas: a mulher suave, os quadros coloridos, o relógio cuco na parede. E, de repente, o susto de algo a se enovelar em sua perna: o gato. Reagiu, afastando-se. O bichano, contudo, se aproximou de novo, a maciez do pêlo agradando. E a mão desceu numa carícia. 

O menino experimentou de fininho uma alegria, como sopro de vento no rosto. Já se sentia menos solitário. Não vigorava mais nele, unicamente, a satisfação do passado. A nova companhia o avivava. E era apenas o começo. Porque seu olhar apanhou, como fruta na árvore, uma bola no canto da sala. Havia mais surpresas ali. Ouviu um som familiar: os pirilins do videogame. E, em seguida, uma voz que gargalhava. Reconhecia o momento da jogada emocionante. Vinha lá do fundo da casa o convite. O gato continuava afofando-se nas suas pernas. Mas elas queriam o corredor. E, na leveza de um pássaro, o menino se desprendeu da mãe. Ela não percebeu, nem a dona da casa. Só ele sabia que avançava, tanta a sua lentidão: assim é o imperceptível dos milagres. 

Enfiou-se pelo corredor silencioso, farejando a descoberta. Deteve-se um instante. O ruído lúdico novamente atraiu o menino. A voz o chamava sem saber seu nome. 

Então chegou à porta do quarto - e lá estava o outro menino, que logo se virou ao dar pela sua presença. Miraram-se, os olhos secos da diferença. Mas já se molhando por dentro, se amolecendo. O outro não lhe perguntou quem era nem de onde vinha. Disse apenas: quer brincar? Queria. O Sol renasceu nele. Há tanto tempo precisava desse novo amigo.

Autor: João Anzanello Carrascoza

Publicação: Abril/2007
Site: revistaescola.abril.com.br




Se Eu fosse Esqueleto 

Se eu fosse esqueleto não ia poder tomar água nem suco porque ia vazar tudo e molhar a casa inteira. 

Tirando isso, ia acordar e pular da cama feliz como um passarinho. 

É que ser uma caveira de verdade deve ser muito divertido. 

Por exemplo. Faz de conta que um banco está sendo assaltado. Aqueles bandidões nojentões, mauzões, armados até os dentões, berrando: 

- Na moral! Cadê a grana? 

Se eu fosse esqueleto, entrava no banco e gritava: bu! 

Bastaria um simples bu e aquela bandidagem ia cair dura no chão, com as calças molhadas de úmido pavor. 

O gerente e os clientes do banco iam agradecer e até me abraçar, só um pouco, mas tenho certeza de que iam. 

Se eu fosse caveira, de repente vai ver que eu ia ser considerado um grande herói. 

Fora isso, um esqueleto perambulando na rua em plena luz do dia causaria uma baita confusão. O povo correndo sem saber para onde, sirenes gemendo, gente que nunca rezou rezando, o Exército batendo em retirada, aquele mundaréu desesperado e eu lá, todo contente, assobiando na calçada. 

Um repórter de TV, segurando o microfone, até podia chegar para me entrevistar: 

- Quem é você? 

E eu: 

- Sou um esqueleto. 

E o repórter: 

- O senhor fugiu do cemitério? 

Aí eu fingia que era surdo: 

- Ser mistério? 

E o repórter, de novo, mais alto: 

- O senhor fugiu do cemitério? 

- Assumiu no magistério? 

- Cemitério! 

- Fala sério? Quem? 

Aí o repórter perdia a paciência: 

- O senhor é surdo? 

E eu: 

- Claro que sou! Não está vendo que não tenho nem orelha? 

Se eu fosse esqueleto talvez me levassem para a aula de Biologia de alguma escola. Já imagino eu lá parado e o professor tentando me explicar osso por osso, dente por dente, dizendo que os esqueletos são uma espécie de estrutura que segura nossas carnes, órgãos, nervos e músculos. 

Fico pensando nas perguntas e nos comentários dos alunos: 

- Como ele se chamava? 

- É macho ou fêmea? 

- Quantos anos ele tem? 

- Tem ou tinha? 

- Magrinho, não? 

- O cara sabia ler ou era analfabeto? 

- E a família dele? 

- Era rico ou pobre? 

- O coitado está rindo de quê? 

E ainda: 

- Professor, ele era careca? 

Enquanto isso, eu lá, no meio da aula, com aquela cara de caveira, sem falar nada para não assustar os alunos e matar o professor do coração. 

Uma coisa é certa. Deve ser muito bom ser esqueleto quando chega o Carnaval. Aí a gente nem precisa se fantasiar. Pode sair de casa numa boa, cair no samba, virar folião e seguir pela rua dançando, brincando e sacudindo os ossos. Parece mentira, mas, no Carnaval, porque é tudo brincadeira, a gente sempre acaba sendo do jeito que a gente é de verdade. 

Se eu fosse esqueleto, quando chegasse o Carnaval, ia sair cantando: 

Quando eu morrer
Não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela 

Todo mundo sabe que o maior amigo do homem é o cachorro. 

O que a maioria infelizmente desconhece e a ciência moderna esqueceu de pesquisar é que o pior inimigo do esqueleto late, morde, abana o rabo, carrega pulgas e aprecia fazer xixi no poste. 

E se eu fosse esqueleto e por acaso um vira-lata me visse na rua, corresse atrás de mim e fugisse com algum osso dos meus? 

Autor: Ricardo Azevedo 

(Escritor e Ilustrador) 

Site: revistaescola.abril.com.br 
Publicado: Junho/2012 






Casa de Vô 

Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não. 
Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo. Dentadura? Isso ele usa. Mas, de resto, é diferente. 
Minha avó também não é igual as outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate, ela só costura para fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana. E quase nunca está em casa. De calça comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia), sai cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos. 
Daí, o guarda-roupa dela vira elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vovô encostar as portas e, como ascensorista, anunciar: 
- Primeiro andar! Roupas e bonecas. Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas... 
A parede da sala é transformada em galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em tablado de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal. 
Ao cair da tarde, na garagem vazia, enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos e risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do Pisei. 
- Hã? Como assim? Pergunto. Essa é nova. 
Vovô explica sua invenção: 
- Memorize onde estão os papéis. Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais pedaços. 
Eu começo. 
- Pisei? Pergunto, dando o primeiro passo, apertando os olhos. 
- Não! 
- Pisei? Insisto mais uma vez, depois de caminhar um tiquinho. 
- Não! 
Ouço um barulho de chaves. Vovó chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que é para mim, mas não posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra. 
- Tudo bem, vó? Quer brincar de Pisei? Convido. 
- Agora, não, minha riqueza. Vovó vai descansar. 
Vovô continua a me guiar, já sentado na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei o barulho dela sendo armada e das folhas nas mãos dele. 
Sigo. 
- Pisei? 
- Pisei? 
- Pisei? 
E nada. 
Sinto meus pés tropeçarem em algo. Abro os olhos. Vovô, a minha frente, de braços abertos, pronto para um abraço de vitória. 
- Mas eu não pisei em nenhum papelzinho, vô, digo, meio desanimada, mas já engalfinhada e feliz, nos braços dele. 
- O vento foi levando tudo para o cantinho do portão, ele explica, sorrindo. 
- E por que o senhor não me avisou? A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado... 
- Porque eu queria que a brincadeira terminasse com você perto de mim. 

Autor: Beatriz Vichessi 

(Editora-assistente de NOVA ESCOLA) 
Site: revistaescola.abril.com.br 










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