segunda-feira, 16 de setembro de 2013

CONTOS


 
Acontece para quem Acredita

Era um jovem pescador muito pobre, que vivia sozinho numa praia distante. Tinha um pequeno barco em que saía à noite para pescar e, no dia seguinte, vendia os peixes no povoado mais próximo. Certa vez uma onda enorme tragou o barquinho, mas, na manhã seguinte, acordou em sua cabana miserável e viu que tudo era como sempre tinha sido. Veio à sua lembrança uma bela moça que o socorrera em meio às águas e o carregara para seu palácio no fundo do mar. Nesse momento, riu de si mesmo e disse alto: 

De repente se lembrou de uma cerimônia em que ele recebera aquele anel, no palácio no fundo do mar. 

Uma coisa dessas- Você sonhou com a Mãe D’Água. Foi só. 

Levantou-se para ir tomar água, sua garganta queimava de sede. Quando ergueu a caneca para beber viu um anel brilhando em seu dedo. 

- Que é isso? 

Não podia ter acontecido. Mas o anel continuava um mistério. 

Em seguida sentiu uma dúvida terrível: e se estivesse morto? 

O jeito era se olhar no espelho, pois ouvira contar que fantasmas não refletem imagem. Claro que era tão pobre que nem tinha espelho em casa. 

E se quando fosse vender o peixe no povoado, se olhasse no espelho da barbearia? 

Será que tinha pescado alguma coisa? Só se lembrava daquela onda gigante que engolira seu barco. Correu até a praia e não viu o barco. Quem estava lá era a linda moça que o salvara na hora do naufrágio. 

Ela sorriu e disse: 

- Você não quis ficar na minha casa, vim morar na sua, afinal agora somos casados. Disse isso e estendeu a mão para ele. 

Ele viu então que ela usava um anel igual ao que brilhava em seu dedo. 

Respondeu: 

- Venha. 

Caminharam abraçados e, ao chegarem ao lugar onde ficava a cabana, ela não existia mais. Lá, agora, erguia-se um palácio e havia gente entrando e saindo. 

A moça disse: 

- É o meu povo das águas. 

De repente, ele notou que estava vestido com roupas luxuosas em vez dos trapos de antes. 

Sem dúvida a Mãe D’Água o escolhera para marido e não havia força humana que pudesse mudar isso. 

Viveram felizes por algum tempo. Mas, se ele não tinha gostado de morar no palácio no fundo do mar, ela começou a se cansar de viver em terra firme. 

Ficava horas diante do mar rodeado por seu povo das águas. O palácio permanecia abandonado. Ninguém cuidava de nada, tudo era deixado na maior desordem. 

Um dia ele pronunciou as palavras fatais que ela o proibira de dizer em qualquer circunstância. 

- Arrenego o povo do mar! 

Era o que todos esperavam para voltar às profundezas do oceano. Suas palavras valeram como sinal para a debandada. 

A moça e todos os serviçais foram cantando para dentro do mar e sumiram nas águas. 

O pescador olhou para si mesmo e viu que suas roupas de luxo também tinham sumido. Estava outra vez vestido de trapos. Quando voltou para casa, só encontrou o casebre de antes, não havia nem rastro de algum palácio. 

Ao entardecer, sentiu saudades da Mãe D’Água e foi até a beira da praia. Lá estava seu velho barquinho, antes desaparecido. O pescador entrou nele e tomou o rumo do quebra-mar. 

De repente uma grande onda o envolveu e seu pensamento foi: 

- Será que tudo vai acontecer de novo?


Autor: Edy Lima
Publicado: Abril /2007
Site: revistaescola.abril.com. br/



Lado a lado, Bem bolado 

Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes seguido, perderia todas. 

O caso é que ele tinha aprendido que "em cima" se escreve separado e "embaixo" se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário. 

Foi queixar-se pra Vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, todinho mesmo de todas as coisas. 

- É fácil, Ricardinho - ensinou a Vovó. - Levante a mão esquerda, bem aberta. 

- Assim? 

- Não. Essa é a direita. 

- Então é essa? 

- É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração. 

- E de que lado fica o coração? 

- Do lado dessa pintinha que você tem no rosto. 

- Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com "em cima" e "embaixo"? 

- Veja querido: seus dedos, "em cima", estão separados e, "embaixo", eles estão juntos, grudados na palma, não estão? Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! "Em cima" é sempre separado e "embaixo" é sempre junto! 

Ricardinho achou genial a idéia da Vovó. No dia seguinte, na escola, tratou logo de contar o novo truque para o Adriano, seu melhor amigo na 1ª série. 

- Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e... 

- Não vai dar certo - respondeu o amigo. 

- Por que não? 

- Porque, se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto! 

- Bom, então levante a direita, que dá no mesmo. 

- E como é que eu sei qual é a direita? 

- É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho na cara. 

- Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara - discordou o Adriano. 

Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fácil saber que a mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era... Bom, era a outra! 


Autor: Pedro Bandeira 
(Escritor)
Publicado: Abril/2007
Site: revistaescola.abril.com.br/ 




A Cartomante

Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. 

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... 

- Errou! - interrompeu Camilo, rindo. 

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... 

Camilo pegou-lhe nas mãos e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... 

- Qual saber! Tive muita cautela ao entrar na casa. 

- Onde é a casa? 

- Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. 

Camilo riu outra vez. 

- Tu crês deveras nessas coisas? - perguntou-lhe. 

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. 

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia 
dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros e foi andando. 

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbudos, onde morava uma com provinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. 

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo e foi a bordo recebê-lo. 

- É o senhor? - exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. - Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. 

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. 

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di fêmea: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; ela mal, ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de fazê-lo ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele ano recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam. 

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. 

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. 

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. 

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. 

- Bem - disse ela -, eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a. Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo 
divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. 

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar te sem demora". Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera. Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora - repetia ele com os olhos no papel. 
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. 

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então - o que era ainda pior - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num timburé. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. 

"Quanto antes, melhor", pensou ele; "não posso estar assim..." 

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o timburé teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. 

Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do timburé, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no timburé para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: 

Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá! 

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do príncipe da Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele se...? 

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, 
o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fez entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. 

A cartomante fez sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa e disse-lhe: 

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... 

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. 

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não... 

- A mim e a ela - explicou vivamente ele. 

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpuseram os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curiosos e ansiosos. 

- As cartas dizem-me... 

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. 

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito - disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. 

Esta se levantou, rindo. 

- Vá - disse ela -; vá, ragazzo innamorato... 

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. 

- Passas custam dinheiro - disse ele afinal, tirando a carteira. - Quantas querem mandar buscar? 

- Pergunte ao seu coração - respondeu ela. 

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. 

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... 

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o timburé esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. 

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamaram pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. 

- Vamos, vamos depressa - repetia ele ao cocheiro. 

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. 

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. 

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se e apareceu-lhe Vilela. 

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? 

Vilela não lhe respondeu: tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. 




Machado de Assis



Dois Velhinhos 

Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo. 

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um consegue espiar lá fora. 

Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, pergunta o que acontece. Deslumbrado, anuncia o primeiro: 

- Um cachorro ergue a perninha no poste. 

Mais tarde: 

- Uma menina de vestido branco pulando corda. 

Ou ainda: 

- Agora é um enterro de luxo. 

Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto. O mais velho acaba morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela. 

Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse tempo o circo mágico do cachorro, da menina, do enterro de rico. Cochila um instante - é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço: no beco, muros em ruína, um monte de lixo. 


Autor: Dalton Trevisan 









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