quinta-feira, 2 de março de 2017

DIÁRIO DA TRIBO

Zé Anhaia 


José Anhaia é um menino maluco, daqueles que aparecem no deserto pedindo o desenho de um carneiro. Quando o conheci eu estava num momento bem difícil, sem emprego, com esperança minguando, vida esmaecendo ficando cinza, cinza...

Havia conseguido uma bolsa na Unicamp, mesmo lugar onde seo José trabalhava como motorista a poucos anos de se aposentar. Andava como se a vida fosse um eterno domingo, sempre contando piadas e inventando trocadilhos. Dizia que o segredo de seu otimismo era abrir a janela de manhã “para deixar o ar lindo entrar” e que só o governo deixava o seu “P.I. reduzido”.

Erudito, começou a aprender inglês sozinho, depois que encontrou um livro didático esquecido dentro do ônibus que dirigia. O estudo o deixou fluente na conversação. Era ele quem atendia ligações internacionais com desenvoltura impressionante. “Motorista tem muito tempo livre e eu uso para ler e estudar”, contava.

E como lia! Devorava livros com apetite formidável. Contagiou colegas mais escolados incentivando-os a conhecer Rosamunde Pilcher e Gabriel Garcia Márquez. Achava graça nas palavras e as anotava para colocar na roda de discussão do almoço. “Vocês sabem o que é misógino? É um xingamento bem chique, não é? Imagine você disparar para o sujeito ‘seu misógeno’! É muito elegante, não?” Adorava uma boa expressão e um bom título de livro. “Conhece ‘Teresa Batista Cansada de Guerra’? É de Jorge Amado, belo título!”

A hora do almoço era o fórum preferido para ele desenvolver suas minuciosas elucubrações. Fazia questão de trazer questões fundamentais sobre a vida, o universo e tudo mais. Apresentei a ele o Guia do Mochileiro das Galáxias e o depressivo Marvin o cativou. “Como pode um robô com depressão?”, debochava do personagem que virou protagonista de suas piadas.

Mesmo com a intelectualidade invejável, o que mais chamava a atenção nele era a atitude diante da vida. Deixado com um filho especial, José Anhaia o criava sozinho, com a dificuldade de morar longe e cruzar a cidade para poder trabalhar. Com todos os revezes que a vida lhe apresentou, ele jamais aposentou o bom humor e a irreverência. Gostava de plantar bananeira e andar de cabeça para baixo pelos corredores vazios da Unicamp. Um dia, o chefe o encontrou assim. “O que é isso seo José?” voltando sobre as pernas, respondeu sem se abalar, “Estava com dor de cabeça, professor, andar de ponta-cabeça ajuda a passar”, dissimulou.O fato é que o mundo é muito certinho para ser visto de cabeça para cima. Grandes mentes precisam subverter pontos de vista para que ideias fluam, pensamentos sejam oxigenados e as cabeças não fiquem confinadas sobre pescoços. Talvez por isso elas latejem. Esse moleque sexagenário trazia doses homeopáticas de cor para minha vida cinza. Foi pingando seu guache em trocadilhos inteligentes e uma visão absurdamente positiva de tudo. Com sutileza e ironia trazia momentos diários de alegria seguida de sua gargalhada redentora. 

Ontem recebi um e-mail dizendo que o coração de Zé Anhaia parou. Não entendi. Nunca entenderei. O menino que surgiu no deserto desapareceu assim, sem dizer tchau. Jamais vou perdoá-lo por sair desse modo. Há cinco anos liguei para ele num dia de Natal e ganhei dele boas risadas. Não admito que nunca mais vou poder repetir isso. Aprendi com ele que desenhar carneiros pode não nos tirar do deserto, mas torna a jornada mais leve e a vida mais fresca. Vou tentar virar o coração de ponta-cabeça. Deve ajudar a doer menos...

Autor: Fábio Reynol


Site: Blog Diário da Tribo
11/08/2016







O Homem de Terno Encardido 


Estava lá o homem que vivia sentado no meio fio, de perna esticada para o meio da rua. Exalava um fedor solapante que enojava as moscas num raio de cinco metros ao seu redor. Trajava um terno mais sujo que a ficha criminal do Elias Maluco e uma calça mais asquerosa que o passado do presidente do Senado Federal. Dele só se aproximavam os bêbados e bêbado foi que o jovem Edgar o conheceu. 

- Afi! Esse cheiro pode matar alguém de ânsia. Argh! - Comentou o rapaz enquanto despencava na calçada ao lado do maltrapilho. 

O mendigo fechou um olho e espiou o atrevido com um ar desconfiado, encostando o queixo no peito. Soltou apenas um “uh” com a boca. 

Mas a birita no sangue foi soltando a língua do Edgar e aniquilando o seu senso de limites. 

- Se um urubu morresse depois de comer uma carniça de gambá e se o cadáver ficasse trinta dias no sol, o vômito dele teria esse cheiro. – irônico imaginar que, se estivesse sóbrio, Edgar jamais conseguiria compor tão poéticas comparações. 

O fedido se enfezou, porém mantendo uma pachorra proporcional à ofensa: 

- Eu mataria você se me dissesse isso um ano atrás. Respondeu olhando em direção à rua, como se respondesse a uma de suas moscas de estimação. 

- Você tem cara de bandido.... Disse a voz mole de bêbado do Edgar. 

- Eu só não te mato agora porque estou sem vontade. 

- Aí! Não falei? Você já trabalhou de bandido antes de ficar fedendo na rua, não foi? – disparou o rapaz perdendo agora o senso do perigo – Qual é o seu nome? Foi um bandido famoso? 

- Kent. 

- Quente? Você devia ser ator pornô. 

- Clark Kent, eu era jornalista e tô na rua por causa de mulher. 

- Clark Kent!??? Hahaha! Vai dizer que está na rua porque a Lóis Leine te deixou? 

- Aquela desgraçada. Começou a sair com o editor e eu comecei a ficar mais bêbado do que você. 

- Hihihi... O superómi na sarjeta por causa de mulher! Essa é ótima. 

Dessa vez, o mendigo ficou bravo de verdade. Com um só braço levantou um Fusca que estava estacionado ali perto e o arremessou do outro lado do quarteirão. Edgar imaginou que a cachaça que tomara era tão vagabunda que já estava dando alucinação. E aquela alucinação mal cheirosa virou a cara para ele e gritou – “Podia ter sido você!” apontando para o trajeto do Fusca voador. 

Sentado na sarjeta, Edgar só viu o Superomem sair voando com uma cara raivosa. Enquanto observava aquela figura patética desaparecer no horizonte com um terno encardido no lugar da capa vermelha, teve outro insight poético de bêbado: 

“Não adianta ter nascido em Kripton se você tem um espírito de pequenopolitano!” 


Autor: Fábio Reynol 

Site: Blog Diário da Tribo 





Agradeça mais e por Tudo 


Reagimos imediatamente ao mal que sofremos, mas somos apáticos a todo bem que recebemos. Temos um palavrão pronto para quem nos fecha no trânsito, para quem nos empurra dentro do ônibus, para os que passam na nossa frente na fila da padaria... Conseguimos incluir em nossa ira até outras gerações do agressor e, se houver chance, revidamos com a mesma moeda ou com uma agressão maior. Em todos esses casos, nosso sangue se encharca de cortisol fragilizando o coração ao longo de anos de xingamentos e indignações entaladas. 

Por outro lado, recebemos diariamente uma avalanche de benefícios que tomamos por “naturais”, e por isso, nos são invisíveis. Ao acordar, recebemos raios de sol que nos fazem liberar serotonina, um santo estimulante para enfrentar o dia. Nossos pulmões não pararam de funcionar, há ao nosso redor oxigênio de sobra para alimentar o corpo e acalmar a mente. Ao longo do nosso trajeto há outros seres que contribuem para a nossa existência, alguns até humanos. Um que acordou cedo para assar o seu pão, outro que também madrugou para transportá-lo ao trabalho, há ainda o que criou a empresa em que você trabalha e todos os seus colegas que a mantém, graças a todos eles você tem um emprego. Tudo isso não é nada banal, apesar de enxergarmos desse modo. Mas basta um elo se quebrar para amaldiçoarmos nosso dia. Se o carro não pega, a padaria não abre, a empresa vai à bancarrota, praguejamos imediatamente. 

A reação à montanha de coisas boas que ganhamos todos os dias é o simples e poderoso “obrigado”. Como tudo de bom que nos acontece, o agradecimento sincero também não é nada banal. É o reconhecimento de que não temos como retribuir por tudo que recebemos de graça. Isso vai muito além do pagamento pelo pão do seu café da manhã. Nossa cultura mercantilista nos faz etiquetar quase tudo, nos fazendo esquecer que é impossível dizer quando custa as coisas mais básicas e fundamentais à vida. Quer exemplos? Sabemos o preço de uma Ferrari, de uma caneta de grife e da mansão dos nossos sonhos. Contudo, quanto você daria por 24 horas de oxigênio se estivesse confinado numa câmara hermética? Uma pequena explosão na superfície do sol em nossa direção poderia queimar o nosso planetinha e varrer num átimo os projetos que carregamos. Quanto você pagaria para o Sol continuar nascendo suavemente a cada manhã? 

As coisas mais valiosas para a nossa vida não são compráveis. Se o fossem não teríamos como pagá-las. Admitir essa verdade é dizer “obrigado”. Você está respirando? Aquele vasinho de violetas da sua cozinha é co-responsável por isso. A plantinha produz parte do oxigênio que mantém você vivo, e mesmo assim, ninguém a agradece por isso. Seu carro pegou na primeira vez que você virou a chave, mas como em sua cabeça é isso mesmo que deveria acontecer, não há um “obrigado!” ao universo. Uma cadeia de boas ações se desenrola durante o nosso dia e sequer a reconhecemos, por isso ficamos cada vez mais cegos e insensíveis à vida. 

De outro lado, se começamos a agradecer e enxergar cada benefício recebido, vamos perceber que eles são ilimitados. Não haverá um dia em que não exista algo novo para se agradecer. Uma das consequências disso é que treinaremos nossa visão para mirar as coisas boas. Com o tempo, perceberemos que há sempre algo positivo em tudo que passamos. Sairemos do nosso castelinho de mágoas e começaremos a enxergar o mundo com uma visão mais ampla. Nesse ponto, estaremos perto de uma das mais nobres virtudes, a da compreensão. Fruto de outras capacidades raras como a compaixão e a lucidez, a compreensão é uma conquista exclusiva daqueles que conseguem enxergar a realidade sem deformações. 

Há algum tempo, eu estava guiando por uma via movimentada quando outro motorista cortou a minha frente sem dar sinal me fazendo dar uma brecada brusca. “O que esse cara tem na cabeça!?”, gritei. Minha amiga Beth, que estava ao meu lado, respondeu “Fique calmo, o pai dele morreu, ele perdeu o emprego e a esposa acabou de brigar com ele”. A construção imaginária que ela usava para receber as agressões também se tornou uma ferramenta para mim e o ódio momentâneo perdeu a razão de ser. Agradecer pelas coisas boas é caminho para agradecer por tudo, até pelo que não consideramos “bom”. A fechada que levamos no trânsito pode servir tanto para testar nossos reflexos e atenção como para treinar o domínio de nossas próprias emoções. Com isso, em vez de cortisol, nosso corpo se encherá de endorfinas revigorando alma, mente e prolongando a vida do coração. 

Mas isso só vem depois de muitos e muitos “Obrigados”. 

Autor: Fábio Reynol 

Site: Blog Diário da Tribo 




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